quarta-feira, 12 de maio de 2010

Itinerários de uma Escolha - um memorial

Itinerários de uma Escolha - um memorial(1)

Bernadete Ramos Beserra (2)



Empenho-me na decifração de uma história cujo objeto não é o outro: sou eu. Tosco objeto parido nos meados do ano de 1960, numa manhã de São João, nos confins dos Cariris Velhos.

Tudo. Nada esclarecido depois com um mero registro civil de nascimento com hora, dia e ano. Nome de pai, mãe e todos os avós. Desses tempos longínquos, lembro sonhos, pesadelos, noites insones: quando queríamos descobrir e habitar a morada da lua e fabricar outro bicho que não fosse o homem dali. E desvendamos a história de Sumé: quando o rio fecundava terra e mulheres, e exóticos seres pintados com as cores prismáticas dançavam, cantavam, era tempo de frutos fartos.(3)

Aportamos naquele pé-de-serra depois. Quanto tempo depois? E por que diabos fomos parar justamente ali? Ninguém sabia como, ninguém sabia. Ninguém sabia por que Sumé nos abandonara. Ao menos se os mais velhos soubessem. Ao menos soubessem de que outras estirpes, além da de Sumé, éramos fim de rama. Ninguém sabia. Sabiam da genealogia de Cristo, segundo São Mateus. Devíamos encontrar, também, as nossas origens num dos galhos daquela imensa árvore longínqua. Eu: fruto de um enigma. Inventando planos e roteiros para não me perder por atalhos: dali em diante. Entre terços e ladainhas, aprendendo com o cristianismo ocidental que a vida se encerra num profundo e silencioso mistério somente possível de se desvendar no Juízo Final, situado temporalmente muito além do além-túmulo. A inquietação me devoraria se não conseguisse encontrar algo de muito interessante que me absorvesse ao longo da travessia. Fruto de que sincretismo, meu Deus? Desconhecendo os inícios, era-me dado sonhar com parentescos com a Donzela Teodora e Roberto do Diabo, com a Princeza Magalona ou a Imperatriz Porcina. Mas, com a mesma propriedade, também inventava parentescos com a “Comadre Fulôzinha” e os “rasga-mortalhas”. E fomos/fui crescendo em meio à incerteza e ao medo. Medo de tudo. Mas não medo de descobrir: de investigar, muitas vezes sem sucesso, mas com esforço, insistentemente.(4)

De todo modo, não sei ainda de que circunstâncias culturais sou fruto. Mas quem tem certeza de alguma coisa neste Nordeste de beatos, poetas, cangaceiros e judeus disfarçados? Tenho pistas, é certo, mas nada que me permita ir além de conjecturas poéticas. Mas por que isto deveria de ser tão importante?

O fato é que, como bem diz Osman Lins (1973), escritor pernambucano, os inícios jazem nas sombras. Daí ser infinitamente difícil estabelecer o ponto de partida de uma trajetória, e qualquer que seja a história, seja ela de um povo, de uma sociedade ou de apenas uma criatura, há de se conformar com a arbitrariedade da escolha de um certo instante eleito como princípio.

Escrever um memorial em que se relata o itinerário de uma opção leva-nos quase que obrigatoriamente à questão: que circunstâncias me levaram a trilhar certas veredas e não outras? São tantas coisas que se amontoam e se conjugam na determinação de uma direção, tantas delas obscuras: mais fruto da intuição ou da paixão do que da própria razão. O fato é que houve uma conjugação favorável de fatores que me permitiu chegar aqui. Aqui, sim, deveria ser o ponto de partida, e é. É com os olhos de hoje que revejo Sumé. É com todas as armas do presente que revisito o passado. É a consciência dagora que me guia nessa incursão pelo passado, que me permite desenredar perspectivas de um itinerário cuja coerência parece manifestar-se pela primeira vez agora. Isto, pois, é o que passarei a relatar daqui em diante. Foram escolhas, insisto, produto de circunstâncias muitas vezes absolutamente imprevistas, embora depois definidoras.

Devemos nos iludir com as tantas paixões e fantasias que a adolescência nos revela? É curioso, porém, observar como a nossa sociedade, que tantas restrições faz à adolescência, permite ao adolescente tomar decisões que envolvem escolhas que orientarão toda uma história profissional. E daí é que convocada a tal decisão, optei: Bacharelado em Ciências Sociais. E é claro que aí começa uma história e se encerram outras tantas.

Tratemos de dar à luz a alguns momentos das histórias anteriores. Voltemos duas décadas. Eu tinha, então, 10 anos e, desde os 7, quando aprendi a ler, meti-me a percorrer os caminhos fantásticos da literatura. Antes, vivia aperreando todo mundo para me contar histórias: verídicas, exemplares, populares. Nina, com os olhos tomados pela catarata, contando-me a história de Roberto do Diabo: o folheto era guardado a sete chaves no fundo duma mala. Como posso me esquecer da minha mãe, em fugidios e raros instantes de folga, lendo-nos as histórias “verídicas” dos livros de uma coleção comprada, na porta, a vendedores ambulantes? Essas histórias não são inventadas como as dos folhetos de Nina, são verídicas, viu? Lembro-me como soava forte a palavra ve-rí-di-ca. Os textos do “Nordeste” e outros livros didáticos foram os primeiros a ser lidos. Depois, guiada pelas mãos e histórias de Kátia, minha irmã mais velha, conheci Monteiro Lobato e, depois, Jorge Amado. A partir daí, tudo indica, tinha se definido um destino. Ou uma vocação. O certo é que era uma vocação possível, como propõe Marx (apud Bourdieu 1983:63),

"Quem quer que eu seja, se não tenho dinheiro para viajar, não tenho necessidade - no sentido de necessidade real de viajar - susceptível de ser satisfeita. Quem quer que eu seja, se tenho a vocação dos estudos mas não tenho dinheiro para dedicar-me, não tenho a vocação para o estudo, quer dizer, uma vocação efetiva, verdadeira."

Quantas outras meninas de Sumé, daquelas com quem estudei no Grupo Escolar Desembargador Feitosa Ventura, não sonharam também em ser leitoras de romances, escritoras, professoras? Bourdieu (idem, ibidem) continua o raciocínio de Marx, do seguinte modo:

"As práticas se expõem sempre a receber sanções negativas, portanto um reforço secundário negativo, quando o meio com o qual elas se defrontam realmente está muito distante daquele ao qual elas estão objetivamente ajustadas. Compreendemos, na mesma lógica, que os conflitos de geração opõem não classes de idades separadas por propriedades de natureza, mas habitus que são produtos de diferentes modos de engendramento, isto é, de condições de existência que, impondo definições diferentes do impossível, do possível, do provável ou do certo, fazem alguns sentirem como naturais ou razoáveis práticas ou aspirações que outros sentem como impensáveis ou escandalosas, e inversamente."

Pois é, quantas meninas não tiveram vassouras ocupando nas suas mãos o lugar dos livros? Pratos para lavar, irmãos mais novos para cuidar? Quantas apenas sonharam em folhear, em casa, um livro que lhes pertencesse? Essa incursão ao pretérito faz-me lembrar coisas do passado próximo, do presente. Enquanto tento entender por que as coisas chegaram até aqui, ouço, com nitidez, uma frase de Dudé, assentado da Fazenda Califórnia, dita há três meses. Discutíamos questões relativas à gerência coletiva quando descobri que ele era analfabeto. E, mais pensando em mim do que nele, perguntei: “Dudé, você nunca estudou!?” Ao que ele respondeu: “Você quer saber de uma coisa? Eu nunca gostei de perder tempo!”

Não havia desdém, despeito ou inocência na sua resposta. Ele respondeu assim do mesmo modo que poderia ter respondido: de que me valeriam, aqui, os estudos? Dudé não podia, pois, ter vocação para os estudos, a sua vocação era a agricultura, o trabalho alugado para o outro. O outro, aquele para quem Dudé trabalhava, este sim, podia se dar ao luxo de ter a vocação para os estudos. Mas não Dudé e, como ele, milhões de brasileiros também não podem ter a vocação para os estudos.
Voltemos ao meu caso.

As condições objetivas permitiram o cultivo do sonho, mas o acaso certamente ajudou: asmática, obrigada ao recolhimento, sem televisão, devia de matar o tempo com alguma coisa, e essa coisa foram os livros. A primeira crise de asma aconteceu, felizmente, aos sete anos, quando já aprendera a ler, ainda assim era difícil me acostumar a ficar trancada em casa, enquanto irmãos e amigos se danavam pelas ruas, brincando de barra-bandeira, academia, bola de gude e de outras tantas brincadeiras - privilégio dos lugares onde não se tem de dividir o espaço da rua com os automóveis. Mas, de ocupação de momentos de crise asmática, a literatura transformou-se em paixão, opção existencial. Cedo constatei: bem que Monteiro Lobato podia ter escrito mais! E aí tive que buscar outros autores. A escolha se fazia arbitrariamente entre os livros da biblioteca da Prefeitura Municipal de Sumé e, nessas buscas, encontrei tanto Érico Veríssimo como Cronin. Tanto Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, como As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. Provavelmente por aí começou a se definir a paixão pelo outro; paixão que, muito tempo depois, fertilizou ainda mais por ocasião do encontro com a Antropologia, já nos fins do bacharelado em Ciências Sociais.

Já nas primeiras andanças pelos caminhos da literatura surgiu o desejo de migrar, conhecer outras gentes, outras cores e paisagens: outras possibilidades. Depois foi a obrigatoriedade de migrar: a pobreza de Sumé não lhe permitia oferecer mais do que o curso de segundo grau aos seus filhos. E foi aí que se impôs, por desejo meu e de minha família, a necessidade de sair para Campina Grande e lá continuar os estudos até a obtenção de um grau qualquer, que me permitisse superar o destino, quase inexorável, do casamento com dezenas de filhos e pouco conforto. Há de se dizer também que eu era a sexta filha de uma família de doze filhos, de um pai comerciante cujo comércio, embora o fizesse figurar entre as famílias de melhores condições da cidade, não era suficiente para tornar possível o cumprimento das expectativas e sonhos de tantos filhos.

Cheguei, pois, a Campina Grande. Tinha então 17 anos. Diferente de todos os meus irmãos, tanto mais velhos como mais novos, cheguei a Campina Grande com o privilégio de estudar num dos melhores colégios da rede particular, o Pio XI. Tinha conquistado o meu primeiro mecenas, ou seja, a mensalidade era paga por Laís, irmã recém-casada com um professor da Universidade Federal da Paraíba, na casa de quem fui morar. Foi no Pio XI, cursando o segundo científico, que conheci Álvaro Luís Guedes Pinheiro e, sem nenhuma dúvida, a amizade com esse poeta apaixonado e inquieto fez-me descobrir possibilidades que estava longe de descobrir se continuasse nas minhas buscas solitárias em Sumé.

Foi somente, portanto, em março de 1977 que, pela primeira vez, ouvi falar em ditadura militar. Ora, se apenas cinco anos antes, em 1972, comemorava ingênua e fervorosamente o Sesquicentenário da Independência, empinando papagaios nas cores verde-amarelo?! Quando ia poder imaginar que, enquanto escutava pelo rádio
(a televisão chegou em Sumé em 1968, mas lá em casa somente nos fins de 1970) os gols da vitória do Brasil, milhares de brasileiros eram presos, torturados e mortos por lutar por liberdades políticas e melhores condições de vida? Pedi para Álvaro repetir e explicar. Como é?! O sentimento era de profunda traição. Não que antes disso não tivesse duvidado de muitas coisas, ou deixado de questionar outras tantas. Não era o que poderíamos chamar de uma pessoa resignada. Ao contrário, minha inquietação quase sempre incitava o confronto com o outro: por que as coisas devem ser do jeito que são? Mas não era uma irreverência racional, era intuitiva. Havia muita coisa esdrúxula no mundo no qual havia emergido, mas desconhecia as determinações científicas do econômico. Apenas pressentia, como Gullar (1984), que “nada vale quem nada tem neste vale.”

Eis pois o mundo em outros tons, novos e doloridos tons: era esse o ser que o universo teria se demorado bilhões e bilhões de anos para parir? Que o nosso Deus, cristão ocidental, teria criado à sua imagem e semelhança?

Mas a descoberta de que o que tínhamos como desumano era demasiadamente humano não veio sozinha, sem outros alentos. Veio junto com a descoberta de que havia possibilidades de transformar esse ser: a possibilidade de construir uma sociedade nova, sociedade onde as possibilidades fossem iguais para todos.

À medida que o conhecimento foi abrindo frestas na escuridão da ignorância, o sentimento de traição foi cedendo espaço ao desejo incontido de revelar aos quatro ventos a descoberta apocalíptica: não precisamos mais descer aos infernos ou subir aos céus para entender o que é a Justiça, pois podemos construir, aqui, uma sociedade justa.

Foi em meio a essa profusão de revelações que optei pelas Ciências Sociais. Queria também as Letras, a Literatura, mas estava naquele momento mais interessada em compreender mais a minha sociedade e acreditava que era esse o caminho.

Em 1978, ainda estudante secundarista, fundei, juntamente com Álvaro Guedes Pinheiro, Ana Maria Agra e outros amigos, o minitablóide ECO, que, como explicamos no editorial do número experimental 2, “surgiu da necessidade (e inexistência) de um meio que divulgasse trabalhos de pessoas da nossa região, evitando que, à falta de oportunidades, morresse o germe criador numa juventude desinformada da realidade nacional. (...) Ante a apatia das pessoas mais capacitadas, resolvemos assumir, com toda nossa inexperiência, o encargo de fazer surgir tal veículo.” E, complementávamos: “... fazer, nas atuais circunstâncias, já é um passo importante, e fazer bem feito será o nosso grande objetivo.”

Vivíamos já a tão propalada e ambígua abertura dos últimos anos do governo militar. Tentamos nos vincular à Pastoral da Juventude porque queríamos nascer como veículo de comunicação dos movimentos populares. Queríamos servir ao movimento, mas queríamos também o seu respaldo institucional, afinal, não havíamos voltado ainda ao Estado de direito. Vivíamos, ainda que fossem os últimos instantes, um tempo de exceção e, como dizia D. Hélder Câmara, “exceção é exceção, exceção não é regra”. Estado de direito é outra coisa. Temíamos, pois, os perigos das ambiguidades do ínicio do processo da abertura lenta e gradual do General Golbery. Seríamos, se tudo corresse bem, um órgão de comunicação da Diocese de Campina Grande. Os representantes da Igreja com quem nos reunimos não aceitaram a nossa proposta, mas nos apoiariam em tudo o mais que fosse necessário: confecção de artigos, venda dos jornais etc. Não era o que queríamos, mas já era uma ajuda significativa. O jornal ECO acabou saindo independente e durou um ano, quatro números e muita experiência e inquietação: havia mais miséria em Campina Grande do que eram capazes de supor as nossas conjecturas. Mas não foi só Campina Grande, com os seus problemas, o que nos foi dado conhecer nesse período. Precisávamos, também, estar bastante sintonizados com tudo o que acontecia política e economicamente além dos nossos limites, em todo o Território brasileiro. Considero essa experiência no ECO uma das principais razões da minha escolha pelas Ciências Sociais. Não apenas precisava conhecer mais profundamente de que era resultado a nossa realidade, como acreditava que a Sociologia havia de ter, senão as fórmulas da transformação, importantes pistas.

Depois, nos anos 80, provavelmente consequência do que nos foi possível conhecer no período do jornal, fundamos o Comitê de Defesa da Amazônia que, entretanto, teve vida ainda mais curta do que o jornal. Mas foi uma forma de iniciar a discussão sobre a necessidade de se educar a população para preservação do meio ambiente. Como organizadores do CDA, introduzimos, apesar da resistência dos militantes, essa discussão no MDB Jovem; em alguns colégios de segundo grau, através de visitas a salas de aula, e na UFPB, através de cartazes e palestras informais organizadas em conjunto com os centros e diretórios acadêmicos.

Entre 1982 e 1983, resultado da convivência com as sociedades de amigos de bairro, principalmente a de Bodocongó, e com o propósito de contribuir, minimamente que fosse, na luta contra a segregação educacional, organizamos um curso supletivo e pré-universitário para os adolescentes e adultos pobres desse bairro. O curso funcionava à noite nas instalações da UFPB, e, surgiu da necessidade de permitir a pessoas, sem condições de pagar os cursinhos pré-vestibulares, o acesso mínimo indispensável ao conhecimento para o sucesso no concurso do vestibular. Durante dois anos, um grupo de universitários das mais diversas áreas se revezou nas atividades letivas. Nesse cursinho, lecionei as disciplinas Português e Literatura brasileira, durante três semestres. A dificuldade de encontrar substitutos, à medida que íamos concluindo nossos cursos, foi a principal razão do fechamento do Cursinho Educação Popular que, no entanto, em sua exígua existência, possibilitou a muitas pessoas o acesso à Universidade. Ainda tentamos a manutenção do curso através de um convênio com os cursos de licenciatura das escolas superiores (Universidades, faculdades) de Campina Grande. A idéia era que o curso funcionasse como um espaço para estágio dos professores em formação. Afinal, matar-se-ia dois coelhos com uma só cajadada, isto é, resolveria o problema de estágios para os alunos de licenciatura e, simultaneamente, propiciaria a oportunidade de estudo aos que não tinham condições de pagar "cursinhos.” Infelizmente não encontramos quem quisesse assumir a administração dessa Escola e a história do cursinho "Educação Popular" terminou aí. Mas não posso deixar de registrar que essa experiência, apesar da sua exiguidade, não foi sem consequências para a minha formação. São poucas satisfações que se equivalem à satisfação de ajudar o outro a descobrir as leis do universo que o forjou. Não há dúvida metafísica que não ceda ao brilho do olhar de quem aprende e ensina que aprender não é uma via de mão única. Daí, constatei que, contra os impasses da teoria, o melhor remédio é a prática, ou ainda melhor, a práxis. Poucas atividades fizeram-me tão satisfeita quanto a do magistério. O conhecimento dialético não pode se contentar com a pobreza da solidão: é preciso ser posto à prova das trocas da práxis.

Essas foram algumas das atividades de extensão de que participei enquanto estudante de Ciências Sociais da UFPB. No âmbito das Ciências Sociais, participava da organização de encontros nessa área, sobretudo de estudantes para discussão de currículos e conteúdos curriculares; trabalhava como auxiliar de pesquisa, mas apenas auxiliar mesmo e, a partir de 1981, passei a exercer a função de monitora. Além disso, organizamos, ao longo do curso, alguns grupos de estudos, em geral orientados por algum professor. Assim, participei do grupo de Estudos Geográficos coordenado pelo Prof. José Grabois, geógrafo, hoje filiado à UFPe; do grupo de Teoria Sociológica, coordenado pela Profa. Norma Soller e, a partir de quando iniciei minhas atividades como monitora da área de Antropologia, de um grupo de estudo que, além de mim e Ruth Lopes, também aluna, era composto pelos seguintes professores: Gustavo Ribeiro, Ruth Almeida e Cristina Marin.

Pouco antes do exercício da monitoria em Antropologia, já se tornava evidente a minha preferência por esta ciência, mas as atividades de monitora obrigaram-me a uma aproximação maior. Os antropólogos e professores Hugo Enrique Ratier, Maria Cristina de Melo Marin e Regina Célia Reyes Novaes foram os que mais me incentivaram a trilhar os caminhos dessa ciência. Por uns dois anos, estive noite e dia migrando do significado da fé dos Borboletas Azuis(5) para os mistérios dos feiticeiros e sua magia; do significado da morte nas culturas orientais para as razões do consentimento à dominação. A Antropologia parecia uma espécie de chave mágica que me levava a uma profunda compreensão do homem em suas diversas e milhares possibilidades culturais. O estudo do estruturalismo levi-straussiano levava-nos tanto à Economia quanto à Linguística e à Psicanálise. O desvendamento do significado dos fatos sociais da perspectiva dos indivíduos, dos códigos e ruídos da comunicação entre indivíduos, classes, grupos ou culturas, mostrava-me pistas sólidas para a realização de um sonho que nunca deixei de acalentar: o da abolição das iniquidades sociais.

Eu vivia a Antropologia como uma viagem sem retorno, como quem desperta à consciência, semelhantemente a como vivi, na tenra adolescência, a viagem à filosofia das determinações concretas e históricas da nossa sociedade. Não dá para voltar, a ordem é se embrenhar cada vez mais pelas suas trilhas, seus caminhos, suas veredas que acabam por ser, também, as trilhas, os caminhos e as veredas do homem, da humanidade. Sem desconsiderar as determinações de classe, a perspectiva antropológica aponta para a possibilidade de conhecimento do homem universal, sendo, no entanto, essa possibilidade decorrência do conhecimento do homem particular em todos os seus níveis de determinação. É nesse sentido que Marcel Mauss dizia que o que importa à Antropologia é o melanésio de tal ou tal ilha, pois “os fatos sociais não se reduzem a fragmentos esparsos, eles são vividos por homens, e essa consciência subjetiva, tanto quanto seus caracteres objetivos, é uma forma de sua realidade” (Lévi-Strauss, 1975:212).

Esse diálogo entre objetividade e subjetividade permite vislumbrar o campo ou o momento da transformação, enseja fazer surgir o homem de carne e osso que, ao tempo em que reproduz estruturas, tem também o poder de transformá-las. Aliás, é algo semelhante a isso que Marx nos ensina, quando diz que os homens fazem a história sem que tenham consciência disto. É necessário, pois, desvendar as possibilidades de fazer com que essa consciência venha à tona. É o próprio Marx quem também nos diz que, embora as determinações sejam decorrentes da estrutura econômica, é no âmbito das superestruturas que os homens vêm a tomar consciência da história. A transformação, portanto, requer a quebra de determinadas estruturas, mas é o conhecimento exaustivo dessas estruturas que nos permitiria reconhecer seus flancos para, então, atingi-los.

As determinações concretas da dominação de classes é a primeira questão. A seguinte é o conhecimento profundo da sua história e, então, as estratégias de transformação. Desse modo, fui guiada, pela intuição ou pela vocação, a estudar os processos ideológicos na nossa sociedade através de algumas das suas diversas manifestações.

Interessava-me, sobremodo, compreender a dominação sob as suas duas faces: a coerção e o consentimento. Esse interesse levou-me tanto ao teórico-mor das superestruturas, Gramsci, como à sociologia de Bourdieu. Levou-me, também, à teoria crítica de Habermas e à antropologia de Godelier.

Além da academia, houve outras influências que me deixaram sempre suspensa num fio, à la Nietzsche, entre a Literatura e a Antropologia. Impossível é esquecer os ensinamentos do Prof. Átila Augusto de Almeida, de quem me aproximei através de Oriana, sua filha, que era amiga desde o segundo ano científico. Átila apresentou-me a Jorge Luís Borges, Julio Cortázar, Octavio Paz e Juan Rulfo, entre outros da literatura hispano-americana. Estes, no entanto, encantaram-me mais. Sei que, sem conhecê-los, jamais seria o que sou. É claro que o mesmo digo sobre as outras trilhas e, para além das determinações econômicas, somos, cada um, a síntese de múltiplas determinações.

Meus primeiros dramas com o método científico aconteceram durante a pesquisa do fim do bacharelado. Escolhi estudar o movimento dos Borboletas Azuis. Interessava-me mais apreender a cosmovisão religiosa do grupo do que a verificação das razões da sua emergência no espaço social urbano (Negrão & Consorte, 1984:11). Minha compreensão de pesquisa aproximava-se já do que vi depois em Ecléa Bosi (1979:2):

"Romam Jakobson refletirá que a observação mais completa dos fenômenos é a do observador participante. Uma pesquisa é um compromisso afetivo, um trabalho ombro a ombro com o sujeito da pesquisa. (...) Não basta a simpatia (sentimento fácil) pelo objeto da pesquisa, é preciso que nasça uma compreensão sedimentada no trabalho comum, na convivência, nas condições de vida muito semelhantes.(...) Segundo Jacques Loew é preciso que se forme uma comunidade de destino para que se alcance a compreensão plena de uma dada condição humana. Comunidade de destino já exclui, pela sua própria enunciação, as visitas ocasionais ou estágios temporários no locus da pesquisa. Significa sofrer de maneira irreversível, sem possibilidade de retorno à antiga condição, o destino dos sujeitos observados."

O desenvolvimento da pesquisa de campo foi entrecortado por constantes questionamentos. Quase sempre eu me percebia porta-voz de um etnocentrismo que combatia teoricamente: eu me recusava a compreender (e admitir) lógica tão diversa da minha. Provavelmente porque, de fato, não era tão diversa assim. E, então? Para onde teria ido a objetividade positivista das Ciências Sociais? Somos humanos diante de humanos, não de andróides. A identificação mínima necessária (a simpatia) diminuía a cada ida a campo. Mesmo não considerando que seja necessário entre sujeito pesquisador e sujeito pesquisado (objeto da pesquisa) identificação tão absoluta como Ecléa Bosi propõe, acho que é fundamental envolver-se com o objeto da pesquisa, apaixonar-se, no sentido gramsciano, no sentido de ser capaz de tomar como sua a causa do objeto/sujeito da sua paixão (Oliveira, 1977).

Mas o fato é que não consegui me apaixonar o suficiente. Mudei de tema. Resolvi estudar a Separação do Casal. Este não constituíria um problema como o anterior, porque era um fenômeno que, embora estivesse presente em todas as classes sociais, dizia principalmente respeito às camadas médias. E eu sou das camadas médias. Não tenho dúvidas, hoje, de que foi uma redenção fácil, apesar do trabalho ter demandado um certo esforço: não discuti a questão apenas do ponto de vista das classes médias. Procurei contrapor a sua visão de mundo nessa questão específica, com a mundividência das classes populares. E o resultado é que não há apenas diferenças de concepção entre as classes, mas também entre as gerações, entre os sexos etc. Consegui ser bacharela com essa monografia. Depois passei por algumas disciplinas da área de Educação para fazer jus, também, ao título de licenciada. Não tinha ainda convicção sobre se preferia o magistério do segundo grau ou os caminhos escarpos da Ciência em cursos de pós-graduação. Levada pela contingência do desemprego e também pelo gosto do desafio do conhecimento, candidatei-me ao concurso do Mestrado em Sociologia Rural. Tinha já essas incursões controversas na pesquisa por conta própria e alguma experiência como auxiliar num grupo de pesquisa sobre “Processos de Mudança Sócio e Econômica da Paraíba: o Cariri Paraibano.”(6) Esta pesquisa foi, também, uma profusão de revelações cruéis: eu estava sempre diante de uma cadeia infindável, ao menos aparentemente, de subserviência, submissão. Diante de um homem tão roubado e despossuído que o mínimo que ainda tinha considerava que devia à Graça divina ou à boa vontade dos governantes. A partir desse contato, interessei-me em compreender as determinações dessa ideologia da esmola e, sob o título "Aposentadoria rural: reforço à ideologia da submissão?”, apresentei minha proposta de estudo à banca do concurso do Mestrado em Sociologia Rural. A mesma questão poderia ter sido explorada no estudo do trabalho nas frentes de emergência - já que elas são também tidas como fruto da enorme generosidade dos governantes, a quem se agradece, sempre que é dado agradecer, através de reza ou do voto. Mas a necessidade de constituir um inventário das representações sobre o processo de mudanças vivido no campo nas últimas décadas fez-me decidir pelos aposentados que, tendo vivido sob as relações tradicionais de trabalho e dominação, teriam, mais do que os jovens, elementos para discutir a mudança a partir do que viviam antes e do que vivem nos dias atuais.

O desenvolvimento dos estudos ao longo do curso e o contato com a realidade do Brejo Paraibano(7) fizeram-me deslocar o estudo do Cariri para o Brejo. O Brejo era outra história: tive de aprender tudo, da paisagem, que é completamente diferente da do Cariri, à história da dominação das classes. Além de tudo isso, a dinâmica do movimento sindical no Brejo estava a exigir uma atenção especial dos pesquisadores e estudiosos do movimento sindical. Em outubro de 1984, havia acontecido a primeira greve dos canavieiros da Paraíba e, tudo indicava, o espaço era fértil para a consolidação da oposição sindical que, desde 1983, saíra vitoriosa nas eleições para mudança de diretoria de alguns sindicatos na região. O meu interesse mais direto pelas questões do movimento sindical na região surgiu, no entanto, antes da greve. Durante o ano de 1984, participei, ainda que esporadicamente, pois permanecia vinculada à Pesquisa do Cariri, dos estudos e discussões do Grupo de Assessoria ao Movimento Sindical no Brejo Paraibano (8). Como participantes deste grupo, eu e Emma Cademartori Siliprandi assessoramos algumas vezes o grupo de oposição sindical que se formava em Alagoa Nova. Foi, portanto, por essa via que cheguei a Areia (9) e, além dos motivos econômico-culturais para a sua escolha como espaço da realização da pesquisa de campo, outra razão se impôs: Areia era considerada a pedra no sapato do movimento sindical no Brejo. E me interessava compreender também as razões deste fato.

Foi, portanto, a partir desse estudo que passei do geral ao específico, isto é, passei da história da dominação de classes na Europa para a história da dominação de classes no Brasil; da história da formação do proletariado (genericamente) para a história da formação do campesinato. Desci, por assim dizer, à concretude cotidiana das histórias particulares. Para não me demorar muito nessa experiência, vou apenas resumir os seus principais achados: as representações que os trabalhadores têm da aposentaria (esmola, dádiva, gratidão etc) levaram-me a formular a hipótese de que a aposentadoria, do modo como tinha surgido na vida de cada um, funcionava como um elemento de reforço à ideologia da dominação tradicional. O que encontrei em Areia foram escombros da dominação tradicional: as transformações ocorridas no campo nas três últimas décadas feriram mortalmente as relações tradicionais de trabalho. Nesse sentido, não havia mais o que se reforçar, isto é, se a ideologia se constrói para explicar e legitimar algo que lhe serve de substrato, é natural (não mecânico, imediato ou automático!) que a decadência desse substrato que a originou resulte, num momento posterior, também na sua decadência. Isso que agora é tratado como evidência somente se tornou evidência quando já escrevia a dissertação, o que me parecia estar fazendo um percurso ao inverso: é o problema de quem parte das superestruturas, desconhecendo os processos estruturais. Aí sim, após compreender os nexos das determinações de todos os níveis e, superando a hipótese original, desenvolvi o estudo na perspectiva de compreender as representações dos trabalhadores aposentados na confluência das relações tradicionais de trabalho versus cidadania.

Orientada pelas professoras Regina Novaes e Cristina Marin, a quem devo não apenas os méritos do trabalho mas também a inspiração/disposição para concluí-lo, defendi a dissertação de mestrado em maio de 1989, depois de sinuosa trajetória, que inclui o benfazejo encontro com Sérgio Brito, o casamento, três filhos e a saída de Campina Grande para Fortaleza. (10)

Fortaleza. Cheguei aqui nos primeiros dias de março de 1986. Lucas, então, tinha apenas três meses e, sem ainda o saber, já estava grávida de Raquel, que nasceu em janeiro do ano seguinte. Ao contrário dos tempos de mestrado, quando o meu tempo era contado em função da quantidade de páginas lidas e resenhadas, o tempo em Fortaleza era controlado por outras medidas: quantidade de fraldas lavadas e passadas, mamadeiras e sopinhas. Estava em Fortaleza como se em qualquer lugar estrangeiro: exilada nas lides domésticas. E como esse exílio foi importante! Apesar dos raros contatos com o mundo circundante, em setembro de 1986, soube que a Profa. Sílvia Porto Alegre estava fazendo uma seleção para contratar um assistente para a pesquisa “Arte é Trabalho”. Foi a minha primeira incursão profissional em Fortaleza. Trabalhamos juntas durante quatro meses, produzindo textos e discussões para a elaboração do relatório da pesquisa. A parceria foi desfeita por oportunidade do nascimento de Raquel.

Em meados de 1987, Ana Maria Agra, amiga dos tempos do Eco, convidou-me para produzir textos para o CETEB (Centro de Estudos Técnicos de Brasília). Escrevi, então, três módulos na área de Literatura para o Programa Estudos Adicionais do Plano de Valorização do Magistério (CETEB-MEC): “A crônica nossa de cada dia”, “O Fantástico mundo do conto” e “Uma viagem pelos mundos da literatura popular”. A produção desses textos foi importante em dois sentidos: por um lado, era uma rara oportunidade de me redimir com a Literatura, paixão marginal que sempre foi relegada a segundo plano nas minhas escolhas profissionais. E, por outro lado, estava diante do desafio de produzir um texto claro e de bom nível. Consegui passar pelo julgamento dos que me encomendaram os textos e, de quebra, aprendi que a complexidade do tema não deve, necessariamente, traduzir-se também na complexidade do texto.

Voltei aos estudos de tese e, ao longo de 1988, complementei a pesquisa de campo, cuja primeira etapa havia sido cumprida entre maio e junho de 1986. A transferência de Regina Novaes da UFPB para a UFRJ certamente tornou o meu trabalho mais árduo, principalmente porque solitário. Mas acabei por concluí-lo no ano da graça de 1988. No final desse mesmo ano, Regina promoveu o meu encontro com Tereza Helena de Paula Joca.(11) E a partir de maio de 1989 fui admitida no ESPLAR (12), como pesquisadora responsável pelo desenvolvimento da pesquisa teórica e de campo do tema Movimentos Sociais no Campo do Ceará. Este era um dos temas em que tinha se dividido a pesquisa maior e que o englobava: “Quadro Recente da Agricultura e Trajetória dos Movimentos Sociais no Campo do Ceará - 1964 - 1985.”(13)

De um momento para outro, eu, que ainda estava com a cabeça na Paraíba, tive de me enredar na história do Ceará. E, como a pesquisa requeria o estudo de campo, tive oportunidade de conhecer a Serra de Ibiapaba, o Litoral de Pacajus e os Sertões de Quixeramobim. Já conhecia a Serra de Baturité. Um ano depois, já escrevendo as últimas páginas do relatório, constatei que sabia mais do Ceará do que da Paraíba.

A importância dessa experiência e desse estudo obrigam-me a mais alguns comentários. Espero, é claro, que a essas alturas, a paciência do leitor não tenha ainda se esgotado.

Sendo o meu tema “A Trajetória dos movimentos sociais no Campo do Ceará", desenvolvi o estudo numa perspectiva historiográfico-antropológica, na qual não me importava apenas inventariar os fatos, mas tentar compreendê-los nas suas diversas determinações. Por exemplo: que injunções históricas explicam o fato de os moradores-parceiros terem se constituído na vanguarda do movimento camponês do Ceará, ao contrário do caso de Pernambuco, onde a vanguarda é dos assalariados? Que relação isso pode ter com a situação atual do movimento camponês cearense?

Embora o projeto mais amplo que englobava o meu tema estabelecesse como limites temporais o período compreendido entre 1964 e 1985, considerei que um estudo mais completo deveria tomar como ponto de partida as origens históricas recentes das organizações camponesas, ou seja, partir dos inícios da década de 50. Essa volta aos inícios permitiu-me esboçar mais nitidamente os contornos da história atual do movimento camponês no Ceará. O ponto de chegada do estudo, como não poderia deixar de ser, é a crise atual por que passa o movimento. Dentre as questões que observei, foi possível fazer uma constatação que me deixou bastante preocupada: ao contrário dos movimentos sociais urbanos, o movimento social no campo cearense pouco se tem beneficiado de um processo sistemático de elaboração e teorização sobre as suas práticas. E, todos nós sabemos que, assim como o movimento influencia a teoria, a teoria influencia o movimento, e os dois se enriquecem nesse intercâmbio dialético. Nesse sentido, os teóricos também são parte do movimento e teriam a função de, para além de compreender as suas determinações estruturais, ajudar na compreensão das questões conjunturais, cuja clareza permite ao movimento maior consequência nas suas estratégias. O fato é que, aqui no Ceará, não há uma equipe de pesquisa constituída com o propósito de acompanhar sistematicamente as questões e os impasses desse movimento. Então, ao contrário dos movimentos sociais urbanos, eles são pouco estudados. Nessa sentido, também, eles perdem com isso. Não estou evidentemente afirmando que não há estudos sobre os movimentos sociais no campo, estudos há, e certamente em quantidade considerável (14). Muitos, são de excelente qualidade, sobretudo desenvolvidos pelos programas de mestrado em Sociologia e Educação da UFC; mas, pelo que nos foi dado conhecer, são estudos que se debruçam na compreensão de questões específicas. É necessário, portanto, que estudos mais abrangentes sejam realizados, pois, desse modo, torna-se possível, também, vislumbrar possibilidades mais abrangentes. Considerando essas questões, é de fundamental importância, para o futuro dos movimentos sociais no campo do Ceará, que se estabeleça uma relação mais próxima, digo mesmo, dialética, entre a teoria e a prática desses movimentos. Digo mais: é imprescindível que se formem equipes de pesquisa que acompanhem mais sistematicamente o movimento, pois, com o estabelecimento de um intercâmbio dessa qualidade, o movimento, não tenho dúvidas, sairá ganhando, e nós, que nos preocupamos com o destino das causas populares, que de alguma forma são também as nossas causas, também ganharemos com isto. Até por que todos sabemos que uma das características desses movimentos é a sua mutabilidade conjuntural: é fundamental que os seus componentes tenham clareza para formular estratégias de ação e participação conjunturais. Do contrário, esse movimento corre o risco de ter sua morte decretada premeditadamente, como, aliás, já vem sendo aventado por algumas assessorias, sobretudo, ante o impasse da cooptação de representações significativas pelo Governo Tasso Jereissati. Torna-se, portanto, cada dia mais urgente o desenvolvimento de estudos teóricos sobre a história mais recente desse movimento. Acredito que nós, do ESPLAR, por uma necessidade do nosso trabalho e pela inexistência de estudos desse cunho, demos um importante passo através dessa pesquisa. Mas as nossas limitações financeiras não nos possibilitam ir muito além, sobretudo porque a provisoriedade do financiamento de projetos não nos permite constituir um grupo permanente e interdisciplinar de pesquisa e não nos enseja também sair para cursos de especialização. Nessa perspectiva, a Universidade teria mais condições do que nós de constituir essa equipe permanente e interdisciplinar de pesquisa, embora isso não signifique que as "organizações não governamentais" deixem de ter um importante papel na produção do conhecimento sobre a nossa realidade.

É claro que essa foi a questão que considerei importante trazer aqui. Outras questões importantes, relativas à dinâmica histórica do movimento, foram desenvolvidas nessa pesquisa mas não convém tratar delas agora.

Dentre uma diversidade de questões que não era possível desenvolver no
âmbito da pesquisa ESPLAR/FORD, interessei-me em aprofundar a que diz respeito à experiência da gestão coletiva em assentamentos da reforma agrária. Organizei o material a que tinha tido acesso durante a pesquisa, transformei em projeto de pesquisa e apresentei ao Concurso ANPOCS/IAF/1990. O financiamento da ANPOCS possibilitou-me aprofundar o conhecimento dessa experiência de reforma agrária que, embora tão distante do que todos queríamos, é a reforma agrária que conseguimos conquistar, merecendo, portanto, todo o nosso respeito e atenção.

Estou, atualmente, em fase de aprofundamento das questões observadas na pesquisa de campo iniciada em junho próximo passado, no Assentamento da Reforma Agrária da Fazenda Califórnia. Estou, infelizmente, diante de evidências que demonstram a fragilidade do processo de conscientização iniciado na luta que culminou no Assentamento. Quatro anos de experiência e um quadro desolador: o analfabetismo, o desconhecimento - quase tão absoluto quanto antes - das regras de mercado, sobretudo do financeiro, o desconhecimento de técnicas agropecuárias sustentáveis e mais outras tantas evidências nos dizem que, se a Califórnia é a "vitrine da reforma agrária no Ceará", estamos perdidos. Todas essas coisas nos dizem muito mais: dizem, por exemplo, que a consolidação da experiência das formas coletivas de organização e gestão do trabalho e da produção nos assentamentos não depende só da boa vontade dos assentados. Tenho refletido sistematicamente sobre as possibilidades de não deixarmos que essa experiência, ainda que precária, de reforma agrária seja transformada num trunfo nas mãos dos que não querem uma reforma agrária sob a direção do campesinato. Todas as reflexões têm me levado a um lugar: é fundamental e urgente que se desenvolva um processo educativo que, iniciado com a alfabetização, permita, a partir da compreensão de questões práticas, o surgimento de uma compreensão ampla e crítica do significado dessa experiência, entre os assentados. Só isto seria capaz de permitir àqueles trabalhadores perceber que a luta pela reforma agrária não termina com a conquista da terra livre. Ao contrário, aí ela inicia. Quero dizer exatamente o seguinte: os assentados estão se esforçando para transformar essa experiência em exemplo e combustível para as lutas que continuam sendo travadas, mas falta-lhes muito, falta-lhes, sobretudo, a capacidade de administrar, de dirigir uma grande produção. Ora, se estiveram sempre sob as ordens de um patrão; se, na melhor das hipóteses, administravam a sua pequena produção familiar, não podemos querer que num passe de mágica eles se tornem eficientes administradores de uma grande produção. É imprescindível, portanto, que aprendam a fazer isto, que sejam treinados, capacitados, e não somente em técnicas da gestão de produção; é preciso que eles compreendam que a sua experiência transcende os limites do assentamento e do desejo de conforto de cada um. Assim, eles precisam ainda aprender muitas coisas: já conquistaram uma compreensão razoável através da luta. Falta a compreensão de que essa luta não se esgota no seu caso particular e mais do que isso: não se esgota com a conquista da terra. Somente a conquista dessa compreensão permitirá que esses trabalhadores tenham como seu e da sua classe, e não do Governo, o projeto da construção de uma organização pela e para a liberdade.

Agora sim. Eis-me diante de um concurso para uma vaga de professora na área de “Educação e Movimentos Sociais”. Acredito que, após esse exaustivo relato, não seja mais necessário dizer o que quer que seja sobre a minha disposição em entrar de corpo e alma no exercício de um magistério cuja preocupação norteadora é a de não reproduzir as clássicas estruturas de dominação; de um magistério cujo compromisso é ajudar o outro a perceber que a libertação dos oprimidos não é apenas a libertação dos oprimidos, é a libertação de todos nós.


1 . Este memorial foi escrito em setembro de 1990 e apresentado como parte do processo de seleção para a vaga de professor assistente na área de Educação e Movimentos Sociais, Departamento de Estudos Especializados, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Ceará. Não fiz nenhuma mudança substancial no texto original, por considerar que ele serviu bem ao propósito a que se destinou: o de explicar os motivos por que eu disputava aquela vaga. O fato de estar escrito na primeira pessoa do singular não torna este documento menos sociológico ou mais ficcional - torna-o apenas mais atraente porque constrói uma proximidade imaginária com o leitor. Os fatos “memoráveis” não são na verdade os fatos “memoráveis”, são apenas os fatos escolhidos entre os “memoráveis”, já que em todas as circunstâncias há, como sugere o Eclesiastes, coisas para dizer e coisas para calar. Nesse sentido, é um discurso “politicamente correto” e, como tal, só suporta os fatos considerados politicamente corretos na época da sua escrita. Além disso, enfatiza certa ordem de fatos mais do que outras. Ou seja, se eu estivesse disputando uma cadeira de Literatura, falaria dos meus contos e poemas, um prêmio num concurso literário e coisas do gênero. Noutras palavras: é um discurso, como a maioria dos discursos, extremamente limitado pelo seu objetivo. De todo modo, bastante consciente de todas essas limitações, achei que valia a pena publicar este memorial dez anos após ter sido escrito porque acho que ele interpreta bem - do ponto de vista sociológico - o conjunto das determinações de uma escolha. Ele mostra, marxisticamente, que não teria havido pleito se este não tivesse sido possibilitado pela posição de classe da autora, mas também abre espaço para mostrar certa fluidez na conjugação dos elementos que determinam uma escolha. Assim, a posição de classe não é determinada somente pelo lugar social do nascimento, isto é, como propõe Bourdieu, os indivíduos continuam, ao longo de suas vidas, a ganhar e/ou perder capital (cultural, simbólico, econômico, social) e continuam podendo ou não fazer novas escolhas, jogar novos jogos, em função dessas perdas ou ganhos.

2 . Bernadete Beserra, doutora em Antropologia pela University of California, Riverside, é professora adjunta do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Ceará.

3. Sumé é um dos municípios da microrregião do Cariri Paraibano. Mas refiro-me, no caso, também a Sumé, a personagem mitológica. Segundo Ferreira (1983:1136) "é personagem lendária, que os índios acreditam haver aparecido misteriosamente entre eles, haver-lhes ensinado a agricultura, e afinal, desgostosa dos homens, desaparecido, com o mesmo mistério. (Foi identificada pelos Jesuítas como São Tomé)."

4. "Comadre Fulôzinha" é uma variação regional da caipora, "ente fantástico oriundo da mitologia tupi, representado, segundo as regiões, ou com a forma de uma mulher unípede que anda aos saltos, ou uma criança de cabeça grandíssima, ou como um caboclinho encantado..." (Cf. Ferreira, 1983:251). Em Sumé, no entanto, ela tinha as seguintes características: Mulher encantada que habita as copas das árvores, assusta os viajantes noturnos e costuma "furtar" cigarros e fumo onde quer que os encontre.
5. "Borboletas azuis" foi um movimento messiânico que surgiu em Campina Grande, nos primeiros anos da década de 1980.
6. Essa pesquisa, financiada pelo CNPq, tinha uma coordenação interdisciplinar da qual participavam os professores José Grabois, Guislaine Duqué e Maria Cristina de Melo Marin.
7. Do Brejo eu só conhecia Areia, mas, de viagens de exploração turística, foi através dos contatos com o Grupo de Assessoria do Movimento Sindical do Brejo Paraibano e da pesquisa sobre as condições de vida e trabalho dos assalariados da cana-de-açucar que conheci, e me impressionei, com a realidade do Brejo para além dos cartões-postais. Essa pesquisa de que participei, tanto das discussões para a sua elaboração quanto das entrevistas na pesquisa de campo, foi desenvolvida pelo SEDUP (Serviço de Educação Popular - vinculado à Diocese de Guarabira) em convênio com o Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal da Paraíba, Campina Grande.
8. Deste grupo participavam, dentre outras pessoas: José Roberto Novaes, Cristina Zavaris, Emma Siliprandi, Regina Reyes Novaes, além das pessoas diretamente ligadas ao SEDUP E CENTRU (Centro de Educação Popular do Trabalhador Rural).
9. Areia, a mais importante cidade do Brejo Paraibano, é sede da Usina Santa Maria, a maior da região.
10. A pesquisa da campo contou com o apoio do "Concurso de Auxílios InterAmerican Foundation/ANPOCS para Pesquisas sobre Processos de Participação Popular nos Programas de Mestrado das Regiões Nordeste e Norte do Brasil", a que submeti o projeto da tese.

11. Tereza H. de Paula Joca, socióloga, era coordenadora da equipe de pesquisa através da qual me integrei ao corpo técnico do Centro de Pesquisa e Assessoria - ESPLAR.
12. O Centro de Pesquisa e Assessoria - ESPLAR desenvolve trabalhos de pesquisa socioeconômica, assessoria sindical e tecnologias alternativas.
13. Esta pesquisa foi desenvolvida com recursos da Ford Foundation.
14. Algumas desses estudos são: BARREIRA, César. “Conflitos Sociais no Sertão:Trilhas e Atalhos do Poder” (USP); CASTELO BRANCO, Telma R. Simões. “Os Posseiros de Parambu e a sua Luta pela Terra”; DAMASCENO, Maria Nobre. “Educação Consciência e Sociedade: A Prática Educativa nas Comunidades de Base”; NASCIMENTO, Edna dos Anjos. “Terra Liberta? A luta pela desapropriação da Fazenda Monte Castelo, Quixadá - Ce”; OCHOA, Maria Glória W. “As Origens do Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais no Ceará: 1954-1964” e PARENTE, Eneida Ramos. “Seca, Estado e Mobilização Camponesa: A Expressão da Resistência Coletiva dos Trabalhadores Rurais na Seca de 1979-83.”



Bibliografia


BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz 1979.

BOURDIEU, Pierre. Textos. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática.
1983.

FERREIRA, Aurélio B.de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1975.

GULLAR, Ferreira. Toda Poesia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1984.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1975.

LINS, Osman. Avalovara. São Paulo: Melhoramentos. 1973.

NEGRÃO & CONSORTE, Lísias e Josildeth. O Messianismo no Brasil Contemporâneo. Col. Religião e Sociedade Brasileira. São Paulo: FFLCH/USP/CER. 1983.

OLIVEIRA, Francisco de. Elegia para uma Re(li)gião. São Paulo: Paz e Terra. 1977.

Um comentário:

  1. Que trajetória, hein? Que sirva de exemplo para todos nós estudantes.

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